terça-feira, 29 de maio de 2012

Entre ir e ficar


Arte: Oswaldo Guayasamín

"Entre ir e ficar hesita o dia,
de sua transparência enamorado.
A tarde circular é já baía:
em seu quieto vaivém se mexe o mundo.
Tudo é visível e tudo elusivo,
tudo está perto e tudo é intocável.
O lápis, os papéis, o livro, o vaso
abrigam-se na sombra de seus nomes.
Pulsar do tempo, latejar-me à fonte,
teimosa, a mesma sílaba de sangue.
A luz tece no muro indiferente
um espectral teatro de reflexos.
Bem no centro de um olho me descubro:
não me fita, me fito em seu olhar.
O instante se dissipa. Sem mover-me,
eu me quedo e me vou: sou uma pausa."

 
Octavio Paz

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Coerência



"Sei que me fazes mal,
mas prefiro tal
à tua ausência.
Nesta loucura imensa
à lucidez me rendo:
na vida, eu aprendi, dose a dose,
que, neurose, é tudo o que não se aceita,
querendo...."
Leila Miccolis

terça-feira, 22 de maio de 2012

Invenção nossa


 Arte: Anelise Sabino

Isso de misturar
azeite, mel e mostarda
enfeite, pedra e palavra
Isso de escrever
Isso de fazer salada
Isso de banho e tosa
tudo invenção nossa
Um modo de fazer crível
a viagem no quarto
a bonança na tempestade
e a liberdade no vício.

Ana Santana – in Em nome da pele

* Isso é a poesia de Ana Santana: poetisa, professora (UNP), doutora em Literatura Comparada (UFRN) e prefaciadora do livro "Maria Clara: uniVersos femininos" (LivroPronto: 2010). Para conhecer mais sobre a autora, visitem o debate literário no Novidades & Velharias

domingo, 20 de maio de 2012

Entre o que vejo e o que digo



Arte: Edward Henry Potthast
Along the Mystic River

"Entre o que vejo e o que digo,
entre o que digo e o que calo,
entre o que calo e o que sonho,
entre o que sonho e o que esqueço,
a poesia.

Desliza
entre o sim e o não:
diz
o que calo,
cala
o que digo,
sonha
o que esqueço.

Não é um dizer:
é um fazer.
É um fazer
que é um dizer.

A poesia
se diz e se ouve:
é real.
E, apenas digo
é real,
se dissipa.
Será assim mais real?

Ideia palpável,
palavra
impalpável:
a poesia
vai e vem
entre o que é
e o que não é.
Tece reflexos
e os destece.

A poesia
semeia olhos na página,
semeia palavras nos olhos.

Os olhos falam,
as palavras olham,
os olhares pensam.

Ouvir
os pensamentos,
ver
o que dizemos,
tocar
o corpo da idéia.
Os olhos
se fecham,
as palavras se abrem. "

Octavio Paz
Tradução: Anderson Braga Horta

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Poetar


                                                                   Arte Rafal Olbinski
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa

sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

Ferreira Gullar

sábado, 12 de maio de 2012

das Mães


Arte: Francisco Metrass

Mulher, como te chamas? - Não sei.
Quando nasceste, tua origem? - Não sei.
Por que cavaste um buraco na terra? - Não sei.
Há quanto tempo estás aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeste o meu anular? - Não sei.
Sabes, não te faremos mal nenhum. - Não sei.
De que lado estás? - Não sei.
É tempo de guerra, tens de escolher. - Não sei.
Existe ainda a tua aldeia? - Não sei.
E estas criancas, são tuas? - Sim.

Wislawa Szymborska




Wislawa Szymborska - Nasceu em Kórkik, Polônia, 2 de Julho de 1923, foi Prêmio Nobel de Literatura em 1996.

domingo, 6 de maio de 2012

Eterno Retorno - Você viveria sua vida de novo?


Arte: Susan Seddon 

Eterno Retorno
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”  
Friedrich Nietzsche


Pequeno trecho do filme "Quando Nietzsche chorou"




Leia mais em:

http://fellipeguerrarj.blogspot.com.br/2010/08/eterno-retorno.html

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Perco sempre a medida



Meu coração, coisa de aço

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-te num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.

Cecília Meireles


terça-feira, 1 de maio de 2012

Que há de ser de mim?


PASSAGEM DAS HORAS
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(...)

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.


Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
(...)
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)