segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sinto-me nascido a cada momento


Gerhard Nesvadba

"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar"

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
"O Guardador de Rebanhos"

Meus pensamentos são todos sensações


“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."
IX - Guardador de Rebanhos
(Alberto Caeiro)

sábado, 21 de abril de 2012

" As coisas falam por si " Van Gogh


Van Gogh - Auto retrato com chapéu de feltro

"Um louco, Van Gogh? Aquele que soube um dia olhar um rosto humano olhe o autorretrato de Van Gogh, penso naquele com um chapéu de feltro. Pintada por Van Gogh extra lúcido, esta figura de carniceiro ruivo que nos inspeciona e espia, que nos perscruta também com um olho feroz.
Não conheço um só psiquiatra capaz de perscrutar um rosto de homem com uma força tão esmagadora e destrinchá-lo com infalível psicologia.
O olho de Van Gogh é de um grande gênio, porém a maneira como o vejo dissecar-me do fundo da tela em que surgiu não é mais o de um pintor genial neste momento, mas o de um filósofo que jamais encontrei na vida. 
 Não, Sócrates não tinha esse olhar, somente o desgraçado Nietzsche, antes dele, teve talvez este olhar capaz de desnudar a alma, de libertar o corpo da alma, de pôr a nu o corpo do homem, fora dos subterfúgios do espírito.
O olhar de Van Gogh é pendente, fixo, ele é vítreo atrás das pálpebras curtas, das sobrancelhas estreitas e sem nenhuma ruga. É um olhar que penetra direto, transpassa este rosto talhado a faca como uma árvore bem podada.
Mas Van Gogh captou o momento em que a pupila vai vazar no vazio, onde este olhar lançado contra nós como a bomba de um meteoro ganha a cor átona do vazio e do inerte que o preenche. Foi assim que o grande Van Gogh, melhor do que qualquer psiquiatra do mundo, definiu sua doença.
Eu penetro, retomo, inspeciono, penduro, despenduro, minha vida morta não oculta nada, e o nada, afinal, nunca fez mal a ninguém, o que me obriga a retornar para meu interior é esta ausência desoladora que passa e me submerge por alguns momentos, mas vejo claro nela, muito claro, mesmo o que nada sei, e poderia dizer o que há dentro.
Van Gogh tinha razão, podemos viver para o infinito, nos contentar com o infinito, há bastante infinito na terra e nas esferas para saciar mil grandes gênios, e se Van Gogh não logrou satisfazer seu desejo de irradiá-lo durante a vida inteira foi porque a sociedade o proibiu."





Antonin Artaud  em  "Van Gogh - O suicidado da sociedade" (1947)

Antonin Artaud  

Alguns de seus autorretratos:




                                                                                                                                                               
Nos 150 anos de nascimento de Van Gogh, a Editora José  Olympio presta uma homenagem ao pintor e lança Van Gogh, o suicida da sociedade.
Publicado em 1947, alguns meses antes da  morte de  Antonin Artaud, o livro foi acolhido com elogios pela crítica e recebeu o prêmio Sainte-Beuve de ensaios, em janeiro de 1948
Poucos textos de Artaud sugerem como este tal embriaguez, tal irrupção de vida e sensualidade.
A edição inclui ainda  ilustrações das obras que Van Gogh criou. Com tradução do poeta Ferreira Gullar, este pequeno ensaio ganha sabor especial.

Assita nesse link abaixo,  vídeo com as transformações que acontecem através da montagem de várias telas de seus autorretratos:

domingo, 15 de abril de 2012

Os mistérios de Clarice

 

Visão de Clarice Lispector
(Carlos Drummond  de Andrade)


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.

Fonte: Memoria Viva



Livro sobre Clarice Lispector só agora chega ao Brasil:

“Clarice Lispector - Figuras da Escrita", que saiu em 2000, com uma tiragem de 500 exemplares, pela editora da Universidade do Minho, em Portugal, tornou-se objeto de culto entre claricianos e só agora chega ao Brasil. (foi lançado no dia 08 de março no Rio).

“Como chegar àquilo a que as palavras mal podem dar expressão?" O enigma que (des)norteia a obra de Clarice Lispector (1920-1977) foi levantado pelo professor e crítico português Carlos Mendes de Sousa ao mergulhar nas profundezas da escritora.


Leia mais em:

sábado, 14 de abril de 2012

Calmaria / Não sei quantas almas tenho




Calmaria (Jota Velloso) / Não Sei Quantas Almas Tenho (citação)(Fernando Pessoa)

"Ê calmaria
melancolia que devora
tempo espicha
o segundo vira hora
Ê calmaria
traz a mágoa e vai-se embora
Quem quer singrar os mares
Sem passar por tempestades
É melhor fincar n’areia
O barco a vela, a vontade
Quem teme a escuridão
Nem cresce ver o brilho
passeando no arco da amplidão
Ê calmaria
Vento vem e leva embora
Meu Deus não me livre disso
não me livre disso, não me livre disso,
Desse risco de tristeza,
desse amor feito por isso
desse rasgo de beleza
Sempre a beira do abismo
Ê calmaria
Vento vem e leva embora
Ê calmaria
Vento vem e leva embora"

"Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem olhei
De tanto ser, só tenho alma. "


“As vezes sou o Deus que traga em mim
e então eu sou o Deus e o crente e a prece,
e a imagem de marfim
em que esse Deus se esquece
as vezes não sou mais que um ateu
o mundo rui ao meu redor,
os meus sentidos oscilam
bandeira rota ao vento
busca um porto longe uma nau desconhecida
e esse é todo o sentido da minha vida.”

Adaptação: Maria Bethânia

Não sei quantas almas tenho.

 
Arte: Salvador Dali
  
"Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem  alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo :  "Fui  eu ?"
             Deus sabe, porque o escreveu. "
          
Fernando Pessoa

 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Não mexe comigo!




Não mexe comigo
que eu não ando só
eu não ando só
que eu não ando só
Não mexe não
Não mexe comigo
que eu não ando só
eu não ando só
que eu não ando só
Tenho zumbi, besouro, chefe dos tupis. Sou tupinambá. Tenho os erês, caboclo boiadeiro, mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris, zarabatanas, curare, flechas e altares. A velocidade da luz no escuro da mata escura, o breu, silêncio, a espera… Eu tenho Jesus, Maria e José, Todos os pajés na minha companhia.
O menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos, o poeta me contou.
Não misturo, nao me dobro. A rainha do mar anda de mãos dadas comigo. Ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim. É do ouro de Oxum que é feita a armadura que guarda meu corpo, garante meu sangue e minha garganta. O veneno do mal não acha passagem. No meu coração Maria acende sua luz e me aponta o caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã. Giro o mundo, viro, reviro. To no reconcavo, quem fez. Voo entre as estrelas, brinco de ser uma. Traço o Cruzeiro do Sul com a tocha da fogueira de João menino. Rezo com as 3 Marias. Vou além. Me recolho no esplendor das nebulosas, descanso nos vales, montanhas. Durmo na forja de algum. Mergulho no calor da lava dos vulcões, corpo vivo da alma de Xangô.
Não ando no breu…
Nem ando na treva…
É por onde eu vou
que o santo me leva
Não ando no breu…
Nem ando na treva…
É por onde eu vou
que o santo me leva
Medo não me alcança, no deserto me acho. Faço cobra morder o rabo, escorpião virar pirilampo. Meus pés recebem bálsamos: Unguentos suave das mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro, No oásis de Bethânia. Pensou que ando só? Atente ao tempo. Não começa nem termina, é nunca, é sempre. É tempo de reparar na balança de nobre cobre que o rei equilibra. Fulmina-me justo. Deixa nua a justiça
Eu não provo do teu fel
Eu não piso no teu chão
E pra onde você for
Não leva meu nome não
E pra onde você for
Não leva meu nome não
Eu não provo do teu fel
Eu não piso no teu chão
Pra onde você for
Não leva meu nome não
E pra onde você for
Não leva meu nome não
Onde vai valente? Você secou. Seus olhos insones secaram. Não veem brotar a relva que cresce livre e verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se fecharam a qualquer música, a qualquer som. Nem o bem nem o mal pensam em ti. Ninguem te escolhe. Você pisa na terra e  não a sente, apenas pisa. Apenas vaga sobre o planeta. E já nem ouve as teclas do teu piano. Você está tão mirrado que nem o diabo te ambiciona. Não tem alma. Você é o oco do oco do oco do sem-fim do mundo.
O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar.
O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu…
Eu posso engolir você, só pra cuspir depois. Minha fome é matéria que você não alcança. Desde o leite do peito da minha mãe até o sem-fim dos versos, versos, versos, que brotam no poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi. Se choro, quando choro, minha lágrima cai é pra regar o capim que alimenta a vida. Chorando eu refaço as nascentes que você secou. Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio.
Vivo de cara pro vento, na chuva. E quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de Ghandi cruzam meu peito: sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta.
Não mexe comigo
que eu não ando só
eu não ando só
que eu não ando só
Não mexe não
Não mexe comigo
que eu não ando só
eu não ando só
que eu não ando só
Não mexe comigo…

(Paulo César Pinheiro)
Textos de Maria Bethânia


Albúm Oásis de Bethânia