quinta-feira, 7 de junho de 2012

Cacos de mim



“Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.
Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionísio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção

Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.”

Affonso Romano Sant'Anna


"É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela"
Friedrich Nietzsche

2 comentários:

  1. São tantos os cacos que a vida nos impõe que chega a ferir nossa alma,quando o catamos.O catar mais difícil é aquele,cujo sentido temos que arranjar,pois ele já fez sentido um dia,agora não faz mais.Ah! se não fossem os cacos que nos ferem,como poderíamos catá-los e quem sabe colá-los fazendo tomar a forma que nos faz bem.Belíssima escolha.Um grande abraço!

    ResponderExcluir